segunda-feira, 15 de maio de 2006


Este conto publiquei-o o ano passado no Jornal Escolar "Crescer", da Escola Secundária de Tarouca. Agora partilho-o com os leitores do meu blog.


Afrodite & Dauphin

Na Austrália, país de belas praias, de ondas propícias ao surf, dos aborígenes, dos cangurus, dos corais, encontramos, no Mar de Coral, a Grande Barreira de Coral. Corais coloridos com muitas variedades, desenhos e tonalidades são um verdadeiro deslumbramento. Milhares de peixes de um colorido indescritível tornam o fundo do mar simplesmente espectacular. Quase todas as espécies de peixes tropicais estão presentes nos recifes. Além disso, as águas límpidas e transparentes deixam vislumbrar uma panóplia de “tesouros”: golfinhos, estrelas-do-mar, ouriços-do-mar, raias gigantes, tubarões (entre os quais o temível tubarão-branco), caranguejos, peixes coloridos (entre eles o peixe-palhaço como o Nemo) … Oh, meu Deus! Como foi possível esquecer as ostras, pois é em torno de uma delas que se vai desenrolar esta história…

Neste coral de sonho, onde qualquer ser humano desejaria viver, morava uma família de ostras. A mais nova – Afrodite, em homenagem à deusa da beleza e do amor – era uma menina de quatro anos, invejada pelo seu sorriso e pela sua exótica beleza. E além de bela, inteligente e obediente. O pai, um destacado oficial da «Marinha Ostrense», passava pouco tempo em casa devido aos seus afazeres. Tentava, no entanto, compensar a filha com mimos sempre que estava em casa levando-a ao clube dos moluscos oficiais. Afrodite adorava, sentia -se no mundo que ela imaginava para si. Apesar de não ser pretensiosa, gostaria de se tornar numa star do cinema. Gostava de nadar na piscina do clube; era um regalo ver tantas ostras em fila para deslizarem no escorrega gigante, umas atrás das ostras, perdão das outras. Ia sempre ao clube na companhia do seu melhor amigo: Dauphin, um golfinho da mesma idade, que tinha uma mancha esbranquiçada, em forma de meia-lua, junto ao olho direito.

Afrodite andava no ostrário (1). Certa manhã, igual a tantas outras, depois de acordar com muita preguiça à mistura, lá foi ela para o ostrário. Na sala da água quente brincavam todos animadíssimos. Repentinamente, quando nada o fazia prever, uma estranha febre assaltou Afrodite, que apresentava dificuldades respiratórias e de visão. Foi a única a apresentar aqueles sintomas febris e por isso teve de ser levada para o ostripal (2). A mãe foi prontamente informada sobre o estado de saúde do seu moluscozinho! Após ter telefonado ao pai que andava em alto mar encontrava-se, agora, no ostripal. Caminhava a passos nervosos, fazendo pequenas ondinhas. Os médicos, numa roda-viva já com medo dos sintomas, foram incansáveis. Uma porta abriu-se silenciosa. Um pediostra (3) saiu cabisbaixo daquela malfadada porta. A mãe de Afrodite, com o coração nas mãos, temeu o pior. O pediostra, com voz meiga e calma, deu-lhe a triste notícia: Afrodite tinha leucemia. Tinham-lhe feito testes ao sangue e à medula óstrea (4). Era uma leucemia aguda.

Afrodite, deitada na cama do ostripal entubada e a dormitar sob os efeitos dos medicamentos, estava calma e transmitia uma imagem de serenidade e de confiança. O pediostra havia-lhe explicado muito bem que doença era esta e tudo o que teria de fazer para vencê-la. Afrodite acreditava num Ser Supremo e gostava de partilhar momentos de oração, nomeadamente depois de jantar e antes de ir dormir. Para ela a oração servia para os unir. Gostava de abrir novos horizontes. Para ela contavam as acções, as ideias e, acima de tudo, o exemplo de todo e qualquer ser. Por brincadeira gostava de proclamar um mandamento que lhe agradava sobremaneira: «amai-vos umas às ostras…». Ali no ostripal havia já rezado a pedir ajuda. Alegrou-se com a visita de Dauphin. Com ele falou e confidenciou-lhe que tinha uma pontinha de medo, mas que queria derrotar aquele temível adversário. Estava confiante! Explicou ao amigo que teria de fazer quimioterapia, o que provavelmente lhe provocaria náuseas e vómitos, descamação e descoloração da crosta. Apesar de tudo era o menos mau, já que não precisava de fazer radioterapia, mas… – aqui a sua voz embargada de menina com medo quase lhe traía o ânimo – era preciso fazer um transplante de medula óstrea. Essa era a parte complicada, pois podia não haver nenhum dador compatível.

Havia que lançar mãos à obra. Era preciso encontrar um dador compatível. Dauphin tomou essa tarefa em mãos. As férias de Natal aproximavam-se a passos largos. As mensagens começaram a correr via e-mail e via SMS. Alguém reparou que no registo do centro de dados do ostripal havia um dador compatível. Todos se encolheram de medo quando o nome foi conhecido. Era Karan um caranguejo temido em todo o coral. Apesar de só ter uma pata dianteira, pois a outra havia-a perdido numa bulha de coral, impunha respeito.

Que fazer?! Quem se atreveria a falar com Karan? Dauphin – o bom amigo de Afrodite – ofereceu-se, mas a mãe de Afrodite achou que não era justo que aquela hercúlea tarefa fosse cumprida por uma criança. Buscando forças no seu coração de mãe lá foi ela ao refúgio de Karan. O marido quis acompanhá-la, mas ela impediu-o. Ela, sozinha, enfrentaria tão temido e cruel vizinho. Maria – a mãe de Afrodite – sempre com o coração aos pulos, acercou-se do esconderijo de Karan.

Saiu cabisbaixa. Era de esperar! Um ser como aquele nada faria sem esperar contrapartidas: queria a pérola da mãe de Afrodite, a mais bela pérola que alguma vez fora vista em todos os oceanos. Era um pedido difícil, mas mais difícil era recusar, pois dessa recusa dependeria a vida da sua Afrodite. Lavada em lágrimas, embora confortada por todos, Maria tinha que decidir, se é que numa situação destas uma mãe pode decidir aquilo que decidido já está.

Fizeram-se vigílias à porta de Karan, apelou-se ao seu coração, mas nada, nada demoveu aquele coração empedernido da sua decisão: ou a pérola ou não haveria medula para salvar Afrodite. Maria conformou-se. Acedeu ao pedido daquela horrenda criatura. Ficaria sem a sua pérola, mas salvaria uma bem mais preciosa.

As férias de Natal, época de gestos nobres por excelência, haviam começado. Ninguém se lembrava que estava em férias. Quem ousaria fazê-lo? Ninguém! Não assim, quando se tem um amigo “às portas da morte”…

Karan, levado pela curiosidade, pela fama da beleza e simpatia de Afrodite, foi ao ostripal. No quarto do ostripal, branco como a inocência daquela criança, Karan sentiu um estranho aperto no coração. Quando Afrodite abriu os olhos e olhou para ele, ficou paralisado como se um raio o tivesse fulminado. Realmente a fama que fazia de Afrodite uma deusa da beleza era justificada. Como era possível uma criança tão linda poder vir a morrer. Ao pensar isto Karan, ele próprio, sentiu-se desprezível. Quando Afrodite lhe dirigiu um “olá”, na sua cristalina voz de criança enferma, Karan… não evitou as lágrimas. Sim, lágrimas de um caranguejo amargurado com a vida, sem amigos, olhado como um facínora, um pária. Um ser desprezível que só a troco de uma pérola doaria a sua medula para salvar aquele anjinho. Saiu do quarto a correr. Chorou, chorou amargamente! Afrodite estranhou e não entendeu.

Passados dias, Karan chamou Maria à sua presença e disse-lhe que doaria, sem contrapartidas e com todo o gosto, a sua medula para salvar Afrodite. Maria pensava estar a ter um sonho e nem queria acreditar no que os seus ouvidos escutavam. O tempo corria depressa, mas para Afrodite parecia não passar. Naquela gélida manhã, mercê das correntes frias vindas do Norte, Dauphin correu para o quarto de Afrodite para lhe comunicar que já tinha um dador compatível: Karan, o temível caranguejo de uma só pata dianteira. Foi, então, que Afrodite se recordou da visita daquela misteriosa personagem.

A operação fora marcada para um sábado, dia de Consoada, de manhã. Todo o coral, excepto a sala de operações do ostripal como é evidente, parou à espera do fim da operação. O transplante fora bem sucedido. Afrodite rezou ao seu deus a agradecer.

(…)

A recuperação era lenta. Afrodite, mau grado a crosta desgrenhada, mantinha a sua beleza e graciosidade. Esta criança que tanto sofrera irradiava felicidade. Todos se congratulavam com a recuperação de Afrodite.

As férias de Natal passaram sem ninguém se aperceber disso. Uma certa manhã, Afrodite visitou Karan. Foi agradecer-lhe pessoalmente. Karan havia-se “convertido”. Agora era respeitado por todos e tinha já alguns amigos. Decidira investir o seu dinheiro na criação do Instituto Karan, uma fundação de investigação para o cancro. Afrodite agradeceu o gesto de lhe ter salvo a vida. Um pueril beijo na face fez com que Karan não conseguisse evitar as lágrimas. Sentiu-se orgulhoso por ter permitido a um seu semelhante continuar a viver. Não mais voltaria a ser interesseiro!

Afrodite & Dauphin, os dois amigos, corriam o coral, brincavam entre algas…

Eram crianças… felizes.

(1) ostrário – infantário para ostras / (2) ostripal– hospital para ostras / (3) pediostra – pediatra das ostras /

(4) óstrea – (medula) óssea.


José Amaral


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