quarta-feira, 30 de junho de 2010

absintiar


absintiar

Agora, só o absinto
- esse carrasco guilhotinesco -
é capaz de me expurgar da alma,
em jeito de estrupo,
os remorsos
que me consomem o corpo
e me dilaceram a alma.

Qual virgem violentada
sinto-me despido de mim
e, dia e noite, uma pérfida tentação
obriga-me a rever-me num louco
e faz-me tentar o suicídio.

Penso, no meio de dois copos
dessa execrável bebida,
na forma eufemística de o fazer:
? veneno ?
? afogamento ?
? forca ?
? pistola ?
Nem sequer ouso
pensar noutras hipóteses,
já que uma destas me é suficiente.

As soluções estão em cima da mesa
cabe-me, agora, corajosamente
escolher aquela que se orgulharia
de me ver estrebuchando por terra,
a boiar num poço,
dependurado de uma árvore
ou exangue.

Escolhi a pistola
e tentei a roleta-russa.
Primeira tentativa e... nada,
depois a segunda,
a terceira,
mais outra e ainda outra.
Nada, nem um só projéctil
conseguiu vencer-me.

Estaria eu sóbrio o suficiente
para a morte não ser capaz
de me olhar no fundo?
Num golo só, suicida,
esvaziei a garrafa absintiada.

Peguei na pistola e fiz girar
o tambor que continha
uma munição apenas.
Como um gambler
fiz rodar a pistola
no dedo indicador,
apontei-a à cabeça,
respirei fundo e...
click... disparei.
Nada!!!

A morte escondia-se atrás
daquela cobarde pistola,
deixando-me cego de raiva,
porque nem bêbedo
conseguia pôr termo à minha vida,
já que sóbrio era cobarde suficiente
para o fazer.
(in "Oráculo Luminar", José Amaral)

sábado, 19 de junho de 2010

Contos filosóficos do mundo inteiro

Agora que as férias estão à porta, mais uma sugestão literária. Uma obra de leitura fácil, mas agradável. Trata-se de Nova Tertúlia de Mentirosos (Teorema, 449 páginas), de Jean-Claude Carrière.
Como nos diz o autor «As melhores histórias do mundo são anónimas. São contos, são filosóficos e vêm do mundo inteiro. São zen ou sufi, chineses ou judaicos, indianos ou africanos. São, também, europeus, americanos, contemporâneos. Engraçados, graves, ou as duas coisas, ao mesmo tempo. São, por vezes, ambíguos, desconcertantes e, até, inquietantes. Parecem-se connosco. Jean-Claude Carrière, ao longo de mais de vinte e cinco anos de trabalho, recolheu-os, escreveu-os e ordenou-os como se se tratasse de um manual de filosofia. Trata-se, pois, da filosofia através dos contos, de um manual em que o caminho para o conhecimento é aleatório e divertido, constituído unicamente pelas melhores histórias do mundo. Estes contos, que atravessam o tempo e o espaço, tratam de todas as questões que, ao longo da história da humanidade e da nossa própria história, sempre nos inquietaram e agitaram. Dizem verdades que só os mentirosos conhecem. Enfim, dizem-nos tudo aquilo que só os contos podem dizer. Histórias de ontem, histórias de hoje: esta é a segunda colheita».

Aqui fica uma pequena história (que se pode ler na contracapa) para acicatar o apetite:
«A um conquistador que todos aclamavam por uma vitória sobre os seus inimigos e que disso se vangloriava até mais não, um humilde mendigo perguntou um dia:
- Quem era o mais forte? O teu inimigo ou tu?
- Eu, é claro!
- Nesse caso, porque te gabas da vitória?».

(José Joaquim)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Fica a obra...



(José Saramago - 1922-2010)



Hoje, 18 de Junho, o escritor português, e Prémio Nobel da Literatura em 1998, José Saramago morreu, aos 87 anos em Lanzarote.
Polémico e nem sempre um nome consensual desapareceu o único Nobel da Literatura que Portugal teve.






(José Amaral)

quarta-feira, 9 de junho de 2010

10 de Junho - Dia de Portugal


Portugal


Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há papo-de-anjo que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso, meu remorso
de todos nós...


(Alexandre O’Neill)

(José Amaral)

sábado, 5 de junho de 2010

Literatura de força...

Desta feita trago uma sugestão de uma obra que me surpreendeu pela positiva. Uma escrita “intelectual”, mas que se lê com agrado. As palavras ganham força como só Natália Correia sabe fazer. Confesso que não conhecia a prosa desta autora (apenas a poesia), mas fiquei bastante agradado. Por isso, recomendo o livro Madona (Planeta DeAgostini, 184 páginas).
Madona é um texto literário narrado por Branca, uma jovem rapariga nascida em Briandos, uma aldeia rodeada de montanhas e de preconceitos quase intransponíveis pela sede de liberdade existencialista que assola a Europa. Quando o pai de Branca morre no leito da prostituta local, e a sua viúva é forçada por um tácito acordo com a sociedade rural a ignorar as circunstâncias da sua morte, Branca decide libertar-se da sua vida espartilhada, enquanto mulher campestre, e refugia-se em Paris.
Em Paris, Branca conhece Miguel, um jovem escritor que a apresenta aos bastidores da revolução de ideias e coreografa a sua nova atitude face às convenções e ao pudor sexual com que crescera. Os amantes de Branca sucedem-se, num rodopio de que Miguel é um espectador quase passivo, convencido de que consegue minimizar os seus sentimentos ao intelectualizá-lo.
Por fim, Branca rejeita os ciúmes de Miguel, sempre camuflados sob uma racionalização exacerbada que a exaurira, e decide abandoná-lo. Vagueia por algum tempo pela Europa, mas acaba por regressar a Briandos. Algum tempo passado, sem nunca abandonar as liberdades que tinham estado interditas à sua mãe, Branca recebe a visita esperada de Miguel. Encontra-o envelhecido e adoentado, embora mais afectado pelos remorsos que as suas perversões tinham deixado para trás do que por qualquer outro tumor. É então que a Fénix do seu amor por Miguel renasce da compaixão que não consegue deixar de sentir, e assim decide partir com ele, rumo a novos ideais.

(José Amaral)