sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Nova Sugestão

Acabei de reler (lê-se num instantinho) o livro de José Eduardo Agualusa, Fronteiras Perdidas (Publicações Dom Quixote, 118 pág.). É um pequeno livro de pequenos contos dividido em duas partes: “Fronteiras Perdidas” (nove contos) e “Outras Fronteiras” (sete contos).
A narrativa destas fronteiras centra-se no universo ficcional globalizado e globalizante e na multiplicidade das identidades originadas após a independência angolana. São contos de e em viagem literária pelo tempo e pelo espaço da “pós-colonização”.
Esta obra, deste angolano nascido no Huambo a 13 de Dezembro de 1960, obteve o Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores.

(José Amaral)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Leituras

Acabei de reler o livro Sonetos de Luís de Camões (da Planeta DeAgostini, 197 pág.) numa edição coordenada por Vasco Graça Moura.
Quase todos os dados biográficos de Camões têm um carácter incerto, dada a quase inexistência de documentos. Assim, e no que respeita aos sonetos, também não há um número certo dos sonetos que são atribuídos a Camões. Muitos são os estudos e em muito diferem as opiniões.
Ao falarmos de Sonetos estamos a falar de uma forma poética constituída por catorze versos (soneto clássico) decassílabos, de origem italiana. O soneto clássico compõe-se de quatro estrofes (duas quadras e dois tercetos).
Camões soube cultivar esta forma de modo notável. Aqui fica um exemplo.


Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos
Compostos de concerto desigual;
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E pois já me não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
Regar-vos-ei com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.


(José Amaral)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Recordar

Pouco mais de um mês depois (foi a 5 de Janeiro) da morte de Luiz Pacheco, apeteceu-me partilhar este excerto retirado da obra (por muitos considerada a obra-prima do autor) Comunidade. «Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão aconchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem, compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva.
É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentacular e voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernas e braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeça central, sem ordenação certa (natural); um grande corpo disforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado) e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingando, às vezes. Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aos bocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão que atingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali são restos de corpos mutilados: uma pernita de criança, um braço nu sozinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...), um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada. Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanche de neve encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados, e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos e confiantes, dum socorro improvável, cada vez mais (e as horas passam!) improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, que chega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos, calados ou palrantes, ladinos ou soterrados, os que já desistiram da madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contra qualquer quantidade de esperança, confiam ainda e esperam.
Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler, e viro-me para o lado esquerdo: é um hálito levemente soprado, pedindo beijos no escuro que me embala até adormecer. Voltamo-nos, remexemos, tomados pelo medo de estarmos vivos, pela alegria dos sonhos, quem sabe!, e encontramos, chocamos carne, carne que não é nossa, que é um exagero, um a-mais do nosso corpo mas aqui, tão perto e tão quente, é como se fosse nossa carne também: agarrada (palpitante, latejando) pelos nossos dedos; calada (dormindo, confiante) encostada ao nosso suor».

(José Amaral)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Lianor ou Leonor?

Descalça vai para a fonte

Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

(Luís de Camões)




Poema da auto-estrada


Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.


Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.


Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.


Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.


Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

(António Gedeão)
(José Amaral)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Quem responde?...

Na edição da Revista “Visão” desta semana (N.º 781.21 de Fevereiro 2008) podemos ler um excelente ensaio de José Gil intitulado “As duas racionalidades”. Fico-me pela parte final que passo a transcrever:

«Um sector gritante de extracção de mais-valias de biopoder é o da Educação. Pela natureza do trabalho do professor (material e imaterial), é sempre possível fazer crer que “modernizar” igual a “gerir bem” igual a “ensinar bem”. O que permite retirar o máximo da “modernização” em mais-valias materiais e imateriais.
Por exemplo, a avaliação dos professores deve ser feita, mas os parâmetros impostos pelo ministério, as aberrações nas exigências da assiduidade dos docentes, a quase impossibilidade de obter a nota máxima, as dificuldades extremas em subir na carreira, o estatuto dos avaliadores incompetentes na matéria avaliada, etc. – estão a empurrar os professores para o abandono da profissão e para a reforma antecipada. A Educação sofre um massacre que provoca a fuga dos professores: não é isto um dos objectivos da “contenção”, a redução do número de docentes e dos custos da educação? A racionalidade necessária da avaliação esconde a outra racionalidade imposta pelo défice.
Nisto tudo, uma questão intriga: porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento contra a figura do professor?»

(José Amaral)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Dia da Língua Materna

Dia da Língua Materna: Extingue-se um idioma a cada 15 diasUma forma de falar, ouvir, pensar e representar o universo por parte do Homem desaparece para sempre a cada 15 dias, que é o ritmo de extinção das mais de 6.700 línguas existentes no mundo.
Em apenas duas gerações, terão desaparecido mais de metade destas línguas, ou seja, ter-se-ão perdido quase 4.000 formas de dizer «amor», segundo calculam os filólogos e linguistas.
A 21 de Fevereiro, quinta-feira, a UNESCO celebra o Dia Internacional da Língua Materna, no ano que já foi declarado pela ONU, como o Ano Internacional das Línguas.
Segundo a UNESCO, as línguas são veículos de transmissão dos sistemas de valores e de expressões culturais, constituindo um factor decisivo para a identidade de cada pessoa.
Ainda que sejam uma componente essencial do património vivo da humanidade, definição dada pela organização cultural e educativa da ONU, mais de metade dos cerca de 6.700 idiomas que existem estão em perigo de extinção.
Algumas línguas encontram-se concentradas num só país, tal como acontece no México, país de língua espanhola que, segundo o catálogo da publicação especializada «Ethnologue», possui cerca de 297 línguas vivas, ainda que em algumas, como o uto-azteca Opata, restem poucas frases por pronunciar: em 1993, apenas 11 pessoas falavam este idioma no Distrito Federal e quatro no Estado do México.
Noutros países, a quantidade de línguas é ainda maior: existem 820 línguas na Papua-Nova Guiné, 737 na Indonésia, 536 na Nigéria, 427 na Índia e ainda mais de 300 línguas sobreviveram à conquista do oeste nos Estados Unidos.
Em alguns países, a taxa de extinção é vertiginosa, como o Brasil, país que tem catalogadas 235 línguas, e provavelmente alguma por descobrir, assistiu ao desaparecimento de 47 idiomas durante o século XX. As 188 línguas vivas brasileiras, excepto o português e o espanhol, ficam prejudicadas por pertencerem a comunidades muito pequenas e dispersas.

(in Diário Digital, edição online 21FEV08)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Mais um "casamento" invulgar

Georges Bernanos nasceu em Paris, a 20 de Fevereiro de 1888 e faleceu em Neuilly-sur-Seine, a 5 de Julho de 1948. Esritor e jornalista francês participou activamente da vida política de seu país. Numa série de artigos posicionou-se contra o armistício franco-germânico.
Aqui ficam algumas das suas célebres citações:

« On n'attend pas l'avenir comme on attend un train : on le fait. »
« Les sentiments les plus simples naissent et croissent dans une nuit jamais pénétrée, s'y confondent ou s'y repoussent selon de secrètes affinités, pareils à des nuages électriques, et nous ne saisissons à la surface des ténèbres que les brèves lueurs de l'orage inaccessible. » (Histoire de Mouchette)
« Il n'y a de vraiment précieux dans la vie que le rare et le singulier, la minute d'attente et le pressentiment. » (Sous le soleil de Satan)
« Quand un homme -ou un peuple- a engagé sa parole, il doit la tenir, quel que soit celui auquel il l'a engagée. » (Préface Journal d'un curé de campagne)
« Pour moi, le passé ne compte pas. Le présent non plus d'ailleurs, ou comme une petite frange d'ombre, à la lisière de l'avenir. » (Monsieur Ouine) « -Moi, je me méfie. D'une manière ou d'une autre, monsieur Ouine, je me méfie de Dieu -telle est ma façon de l'honorer. » (Monsieur Ouine)
« Souffrir, croyez-moi, cela s'apprend. » (Monsieur Ouine)
« Si je recommençais ma vie, je tâcherais de faire mes rêves encore plus grands; parce que la vie est infiniment plus belle et plus grande que je n'avais jamais cru, même en rêve. »
« C'est la fièvre de la jeunesse qui maintient le reste du monde à la température normale ; quand la jeunesse refroidit, le monde claque des dents »


Vitorino Nemésio nasceu em
Praia da Vitória (Açores), a 19 de Dezembro de 1901 e faleceu em Lisboa, a 20 de Fevereiro de 1978. Foi um dos maiores nomes da Literatura Portuguesa (poeta, escritor e intelectual). A sua obra mais visível é Mau Tempo no Canal (publicada em 1944), cuja acção decorre nas ilhas Faial, Pico, São Jorge e Terceira, sendo que o núcleo da intriga se desenvolve na Horta.
Ficou igualmente celebrizado e conhecido por ser o autor e apresentador do programa televisivo Se bem me lembro.
Aqui fica um belíssimo poema de Nemésio:





SEMÂNTICA ELECTRÓNICA

Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores,
E sou ordenado,
Enfim --- o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
--- Mas --- diz-me a ordenança ---
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens...
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
(José Amaral)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O escritor francês André Breton nasceu em Tinchebray, a 18 de Fevereiro de 1896 e faleceu em Paris, a 28 de Setembro de 1966. Foi ele o impulsionador e o grande teórico do Surrealismo.
Em 1919, Breton funda com Louis Aragon e Philippe Soupault a revista Littérature e entra, também, em contacto com Tristan Tzara (fundador do Dadaismo). Breton publica o Primeiro Manifesto Surrealista, em 1924.
Assim, e sob o impulso de Breton o Surrealismo torna-se um movimento europeu que abrange todos os domínios da arte.
Aqui fica um belíssimo poema da sua autoria:



Tournesol

La voyageuse qui traverse les Halles à la tombée de l'été
Marchait sur la pointe des pieds
Le désespoir roulait au ciel ses grands arums si beaux
Et dans le sac à main il y avait mon rêve ce flacon de sels
Que seule a respiré la marraine de Dieu
Les torpeurs se déployaient comme la buée
Au Chien qui fume
Ou venaient d'entrer le pour et le contre
La jeune femme ne pouvait être vue d'eux que mal et de biais
Avais-je affaire à l'ambassadrice du salpêtre
Ou de la courbe blanche sur fond noir que nous appelons pensée
Les lampions prenaient feu lentement dans les marronniers
La dame sans ombre s'agenouilla sur le Pont-au-Change
Rue Git-le-Coeur les timbres n'étaient plus les mêmes
Les promesses de nuits étaient enfin tenues
Les pigeons voyageurs les baisers de secours
Se joignaient aux seins de la belle inconnue
Dardés sous le crêpe des significations parfaites
Une ferme prospérait en plein Paris
Et ses fenêtres donnaient sur la voie lactée
Mais personne ne l'habitait encore à cause des survenants
Des survenants qu'on sait plus devoués que les revenants
Les uns comme cette femme ont l'air de nager
Et dans l'amour il entre un peu de leur substance
Elle les interiorise
Je ne suis le jouet d'aucune puissance sensorielle
Et pourtant le grillon qui chantait dans les cheveux de cendres
Un soir près de la statue d'Etienne Marcel
M'a jeté un coup d'oeil d'intelligence
André Breton a-t-il dit passe


António Aleixo nasceu em Vila Real de Santo António, a 18 de Fevereiro de 1899 e faleceu (vítima de tuberculose) em Loulé, a 16 de Novembro de 1949.
Considerado um dos poetas populares portugueses (embora semi-analfabeto) mais conhecido, ficou famoso pela sua ironia e pela crítica social. Teve uma vida atribulada (mudanças de emprego – uma delas levou-o a ser cauteleiro -, imigração, tragédias familiares, doença) no entanto era uma personalidade conhecedora das diversas realidades da cultura e sociedade do seu tempo.
Aqui ficam uma belíssimas quadras da sua autoria:



Quadras

Sou humilde, sou modesto;
Mas, entre gente ilustrada,
Talvez me digam que eu presto,
Porque não presto p’ra nada.

Eu não tenho vistas largas,
Nem grande sabedoria,
Mas dão-me as horas amargas
Lições de filosofia.

Tu não tens valor nenhum,
Andas debaixo dos pés,
Até que apareça algum
Doutor que diga quem és.

À guerra não ligues meia,
Porque alguns grandes da terra,
Vendo a guerra em terra alheia,
Não querem que acabe a guerra.

Depois de tanta desordem,
Depois de tam dura prova,
Deve vir a nova ordem,
Se vier a ordem nova

Eu não sei porque razão
Certos homens, a meu ver,
Quanto mais pequenos são
Maiores querem parecer.

Vemos gente bem vestida,
No aspecto desassombrada;
São tudo ilusões da vida,
Tudo é miséria dourada.

Os novos que se envaidecem
P’lo muito que querem ser
São frutos bons que apodrecem
Mal começam a nascer.



(José Amaral)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Poema


LuZ

A rua deserta
apadrinhava uma escuridão,
que apenas era atenuada
pela cintilante luz
de uma vela, na janela,
daquele humilde casebre.

Rosita,
uma pobre viúva,
que trajava de preto,
carregado,
sentido,
intentava, assim,
afastar o medo dos filhos
e “distrair-lhes” a fome.

O toco de vela
tinha o pavio
já quase gasto.
A cera escorria
(como as lágrimas dos catraios)
pela parede enegrecida.

Não havia pão
naquela casa,
só fome... e...
uma luz.

Essa luz,
de uma vela amarela,
lembrava-me a mim
que passava naquela rua,
quão inumeráveis
são as casas
onde não há um naco de pão
para enganar a miséria.

Mas dizia-me que
naquela casa
a Esperança
assim como a Luz
(da vela amarela)
era a última a morrer.



(in “Poder da Díctamo”, José Amaral)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Sugestão poética

Hoje sugiro aqui um livro que não é uma leitura, mas uma releitura. Trata-se de um livro de Poesia. Um belo livro! Saúl Dias – Obra Poética (361. Pág, Campo das Letras).
Tratando-se de um livro de Poesia pouco há a dizer (não que não houvesse, há), porque ou se gosta ou nada feito. Todavia, estamos na presença de um tipo de Poesia que nos remete para a meditação espiritual.
Aqui fica um exemplo, um poema de Saúl Dias, como confirmação daquilo que acabo de referir.

UM POEMA

Um poema
é a reza dum rosário
imaginário.
Um esquema
dorido.
Um teorema
que se contradiz.
Uma súplica.
Uma esmola.

Dores,
vividas umas, sonhadas outras…
(Inútil destrinçar).

Um poema
é a pedra duma escola
com palavras a giz
para a gente apagar ou guardar…
(José Amaral)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Dia de S. Valentim - Dia dos Namorados

A 14 de Fevereiro comemora-se o dia de São Valentim. Santo católico dá nome ao Dia dos Namorados em muitos países.
Durante o governo do imperador Claudius II, este proibiu a realização de casamentos no seu reino, para formar um grande e poderoso exército. Claudius acreditava que os jovens se não tivessem família, se alistariam com maior facilidade. No entanto, um bispo romano continuou a celebrar casamentos, indo contra a proibição do imperador. A prática foi descoberta e Valentim foi preso e condenado à morte. Enquanto estava preso, muitos jovens jogavam flores e bilhetes dizendo que os jovens ainda acreditavam no amor. Valentim foi decapitado a 14 de Fevereiro de 270 d.C.
Para o dia de S. Valentim aqui fica um poema de Eugénio de Andrade.



É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.

É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

(José Amaral)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Poema

Hoje publico um poema de Jorge de Sena (não digo que seja a pedido da Meg...). Vale a pena lê-lo com muita atenção. Lê-lo, só, não chega é preciso relê-lo.
(Este post é para o meu amigo Professor Doutor Joaquim de Montezuma de Carvalho).

A Portugal

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não.


(José Amaral)

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Foi há 25 anos

Há 25 anos atrás, Michael Jackson lançava o álbum "Thriller". Foi o início de muitos recordes. Recorde de vendas em todo o mundo, este álbum figura no Guiness Book of Records como o mais vendido da história. Até 2006 mais de cem milhões de pessoas haviam adquirido o disco. Este álbum vai agora ser reeditado com extras e chega amanhã às lojas, para assinalar os 25 anos desde a primeira edição, em 1982.
Este álbum, produzido por Quincy Jones, esteve 37 semanas no primeiro lugar de vendas nos Estados Unidos e até hoje rendeu 27 discos de platina. Em Portugal, e segundo a editora Sony BMG, venderam-se 81 mil discos.
O disco é ainda hoje o maior sucesso de Michael Jackson e com ele Michael Jackson foi o primeiro artista negro a aparecer na MTV, que na altura estava em ascensão.
Michael Jackson, que em Agosto completa 50 anos, é por muitos apontado como "o rei da pop" por ter reinventado a música debaixo de várias influências, da música de dança ao funk, da soul ao R&b, sem esquecer a vertente coreográfica e visual. Cantor desde criança viu-se, ao longo da vida, envolvido em muitas polémicas.
Mas não só polémicas. Em
1985, Michael Jackson se uniu a Lionel Richie e Quincy Jones e promoveu a campanha USA for Africa. A ideia foi gravar uma canção (“We are the World”) cujos lucros reverteriam para reduzir os índices de mortalidade pela fome em África.
Goste-se ou não, Michael Jackson é uma figura ímpar do mundo da música.

(José Amaral)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Grande poeta

Sebastião da Gama nasceu em Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal, a 10 de Abril de 1924 e faleceu a 7 de Fevereiro de 1952, em Lisboa (morre precocemente, atingido pela tuberculose).
Exerceu a profissão de professor (tinha o curso de Filologia Românica) em Lisboa, Setúbal e Estremoz.
Além de professor, Sebastião da Gama foi um excelente poeta. Ficou para a história pela sua dimensão humana, nomeadamente no convívio com os alunos, registado nas páginas do seu famoso Diário.
Aqui fica um belíssimo poema da sua autoria:

Pelo Sonho é que vamos

Pelo sonho é que vamos,

comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?

Haja ou não haja frutos,

pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.

Basta a esperança naquilo

que talvez não teremos.

Basta que a alma demos,

com a mesma alegria,

ao que desconhecemos

e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.

(José Amaral)


Hoje há sermão

«Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.»
(in “O Sermão de Santo António aos Peixes”, excerto, Padre António Vieira)

(José Amaral)

Genial orador

O padre António Vieira nasceu em Lisboa, a 6 de Fevereiro de 1608. Faleceu na Baía a 17 de Junho de 1697.
Este religioso e escritor tornou-se no mais notável orador e prosador português. Destacou-se como missionário em terras brasileiras, defendendo os direitos dos povos indígenas.
Em 1623 inicia o noviciado na Companhia de Jesus. Ordena-se sacerdote em 1635, exerce as funções de pregador nas aldeias baianas e começa a granjear notoriedade como pregador. Os primeiros sermões já reflectem as preocupações socio-políticas do padre António Vieira. Além disso, defendeu também os
judeus, a abolição da distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos) e cristãos-velhos (os católicos tradicionais), e a abolição da escravatura.
Na
literatura, os seus sermões possuem considerável importância, destacando-se o " Sermão de Santo António aos Peixes ". É expulso do Maranhão pelos colonos, em 1661, e regressa a Lisboa. Em 1665 é preso em Coimbra pelo Tribunal do Santo Ofício sob a acusação de acreditar nas profecias do poeta Bandarra. A sua prosa é vista como um modelo de estilo vigoroso e lógico, onde a construção frásica ultrapassa o mero virtuosismo barroco. A sua riqueza e propriedade verbais, os paradoxos e os efeitos persuasivos que ainda hoje exercem influência no leitor.
Certas subtilezas irónicas e o tom combativo tornaram a arte do padre António Vieira admirável.
Quem já leu a obra do padre António Vieira sabe que o que aqui fica dito é, apenas, "uma gota de água no oceano". A sua vasta e rica obra merece toda a atenção.

(José Amaral)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Pausa

O Carnaval é um período de festas regidas pelo ano lunar, isto é não tem uma data fixa (embora tenha um dia, terça-feira, fixo). O dia de Carnaval (“adeus carne”) antecede a Quarta-feira de cinzas, início do tempo da Quaresma. Actualmente, o Carnaval tornou-se um “produto” social e é feito de desfiles e fantasias. Muitos são os carnavais pelo mundo fora, mas dois destacam-se: o brasileiro e o veneziano.
Portugal também “comemora” o Entrudo e existe uma grande tradição carnavalesca, nomeadamente em Ovar, Torres Vedras e Sines.
Na zona de Viseu (e reconhecido em todo o país) o carnaval de Canas de Senhorim é famoso pela “Dança dos Cus”.
Este é, igualmente, um tempo de descanso, pelo que nestes dias talvez não ande por aqui. A todos os amigos/leitores do Ad Litteram um bom Carnaval.

(José Amaral)

Poesia antes da Folia

Georg Trakl é um poeta austríaco, nascido a 3 de Fevereiro de 1887. Aqui fica um poema da sua autoria, numa tradução de Cláudia Cavalcante:

DE PROFUNDIS

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.
Há uma árvore marrom; ali solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.
Como é triste o entardecer

Passando pela aldeia
A terra órfã recolhe ainda raras espigas.
Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,
E seu colo espera o noivo divino.

Na volta
Os pastores acharam o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.
O silêncio de Deus
Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frio
Aranhas procuram meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântano,
Pleno de lixo e pó das estrelas.
Na avelãzeira
Soaram de novo anjos cristalinos.

(José Amaral)