MendicânciA
Faz-se fria a noite, na rua.
Eis que me encontro, aqui,
no aconchego palaciano do meu quarto,
qual poderoso rei mendigando as ruas
- salivadas, cuspidas, escarradas,
pelos janotas engravatados -,
àqueles a quem pertencem.
A frialdade nocturna,
repentinamente, deu lugar
a uma copiosa chuva torrentosa,
que me deixou louco de desejo
de resguardar o mundo
com um gigante guarda-chuva,
dessa pluviátil ameaça.
Estava nervoso!
Comia deleitosamente cigarros
como quem fuma, asquerosamente,
cerejas umas atrás das outras.
Voltei à minha palaciana mendicância.
Mendiguei as pedras paralelepipédicas,
gélidas e amargas,
a quem delas se alimenta
e retira o conforto que só se esbanja
em luxuosas casas.
Ali, na rua de todos,
só os pobres conseguiriam sobreviver
agarrados à miséria
e aos olhares doestos
daqueles que se julgam superiores.
Ali, na rua de todos,
só os ricos conseguiriam perder
não só a dignidade,
assi como a faustosa vida
que seus envidraçados palácios
encobrem desavergonhadamente.
Ali, na rua de todos,
o fidalguia mistura-se, a medo,
com a gentalha numa quasi igual disputa.
Na rua – simplesmente a rua -
os “corpos despidos de alma”
(serão gente?)
vivem o isolamento da multidão
que passa, apressada, ao largo
e nem sequer se digna cruzar
o seu comiserador olhar,
(com medo de ferir a menina dos olhos)
com o empobrecido olhar
daqueles que lhe estendem
a mão migalhando esmolas.
(...)
Anos passaram!
Pedintes nasceram, morreram
e a cidade continuou, indiferente,
às mãos estendidas dos pedintes.
(José Amaral, in "Poder da Díctamo")