sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Eles não sabem...

Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, que passaria a utilizar o pseudónimo de António Gedeão, nasceu em Lisboa a 24 de Novembro de 1906, num ambiente familiar marcado pela figura materna, cuja influência foi decisiva para a sua vida. Poucos meses após ter celebrado o 90º aniversário faleceu em 19 de Fevereiro de 1997.

A mãe tinha como grande paixão a literatura – apesar de ter apenas a instrução primária – sentimento que transmitiu ao filho. É assim que Rómulo toma contacto com nomes como Camões, Camilo, Cesário Verde. Rómulo revela-se uma criança precoce e aos cinco anos escreve os primeiros poemas e aos 10 decide completar “Os Lusíadas” de Camões. Aliado a este interesse pela poesia descobre, quando entra para o liceu Gil Vicente, o gosto pelas ciências. Rómulo sentia-se atraído pelas ciências e fez a escolha da área das ciências, apesar de não ter sido fácil. Na Faculdade de Ciências do porto, Rómulo cursa Ciências Físico-Químicas. Fica assim adiada a poesia para mais tarde, quando “adoptar” o nome de António Gedeão. Em 1932 começa a sua actividade principal como professor e pedagogo. Era um professor exigente (leiam-se as suas palavras “ser professor tem de ser uma paixão – pode ser uma paixão fria mas tem de ser uma paixão. Uma dedicação”).

Apesar da sua intensa actividade profissional Rómulo de Carvalho não esquece a arte das palavras e continua a escrever poesia. Achando que a sua poesia não tem qualidade nada publica. Só em 1956 publicou o primeiro livro de poesia. “Movimento Perpétuo”. Mas como surge com o pseudónimo de António Gedeão, Rómulo de Carvalho permanece no anonimato. O livro é bem recebido pela crítica e Gedeão continua a escrever. A sua obra é enigmática. Surge tardiamente (aos 50 anos) e não se enquadra em qualquer movimento literário.

A sua poesia é uma simbiose perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança. A sua poesia marca uma geração reprimida por um regime ditatorial que acredita que, pelo sonho, poderá alcançar o caminho da liberdade. Depois de 40 anos de ensino (pela falta de autoridade e pela desorganização do ensino em Portugal, pós 25 de Abril) Rómulo de Carvalho decide reformar-se. Dedica-se à investigação e à publicação poética.

A sua obra poética é extensa. Os seus poemas são conhecidíssimos. Quem nunca ouviu “Homem”, “Pedra Filosofal”, “Calçada de Carriche”, “Poema do homem-rã”, “Lágrima de Preta” (já aqui publicado), “Poema da auto-estrada” (qual Lianor camoniana), “Poema do fecho éclair”. Estes, e muitos outros belíssimos poemas de Rómulo/António/Carvalho/Gedeão, podemos encontrá-los no livro “Poemas Escolhidos”, uma antologia organizada pelo autor.

Nesta singela homenagem a António Gedeão deixo-vos dois dos seus poemas. O primeiro porque me fascina o ritmo, a cadência e a musicalidade dos versos e o segundo por ser uma “imitação” muito humorística.

(José Amaral)



CALÇADA DE CARRICHE



Luísa sobe,

sobe a calçada,

sobe e não pode

que vai cansada.

Sobe, Luísa,

Luísa sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.


Saiu de casa

de madrugada;

regressa a casa

é já noite fechada.

Na mão grosseira,

de pele queimada,

leva a lancheira

desengonçada.

Anda Luísa,

Luísa sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.


Luísa é nova,

desenxovalhada,

tem perna gorda,

bem torneada.

Ferve-lhe o sangue

de afogueada;

saltam-lhe os peitos

na caminhada.

Anda Luísa, Luísa sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.


Passam magalas,

rapaziada,

palpam-lhe as coxas,

não dá por nada.

Anda Luísa,

Luísa sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.


Chegou a casa

não disse nada.

Pegou na filha,

deu-lhe a mamada;

bebeu da sopa

numa golada;

lavou a loiça,

varreu a escada;

deu jeito à casa

desarranjada;

coseu a roupa

já remendada;

despiu-se à pressa,

desinteressada;

caiu na cama

de uma assentada;

chegou o homem,

viu-a deitada;

serviu-se dela,

não deu por nada.

Anda Luísa,

Luísa sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.


Na manhã débil,

sem alvorada,

salta da cama,

desembestada;

puxa da filha,

dá-lhe a mamada;

veste-se à pressa,

desengonçada;

anda, ciranda,

desaustinada;

range o soalho

a cada passada;

salta para a rua,

corre açodada,

galga o passeio,

desce a calçada,

chega à oficina

à hora marcada,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga;

toca a sineta

na hora aprazada,

corre à cantina,

volta à toada,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga,

puxa que puxa,

larga que larga.

Regressa a casa

é já noite fechada.

Luísa arqueja

pela calçada.

Anda Luísa,

Luísa sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada,

sobe que sobe,

sobe a calçada.

Anda Luísa,

Luísa sobe,

sobe que sobe,

sobe a calçada.


POEMA DA AUTO-ESTRADA


Voando vai para a praia

Leonor na estrada preta.

Vai na brasa, de lambreta.


Leva calções de pirata,

vermelho de alizarina,

modelando a coxa fina

de impaciente nervura.

Como guache lustroso,

amarelo de indantreno,

blusinha de terileno

desfraldada na cintura.


Fuge, fuge, Leonoreta.

Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro

na volúpia da escapada

pincha no banco traseiro

em cada volta da estrada.

Grita de medo fingido,

que o receio não é com ela,

mas por amor e cautela

abraça-o pela cintura.

Vai ditosa, e bem segura.


Como um rasgão na paisagem

corta a lambreta afiada,

engole as bermas da estrada

e a rumorosa folhagem.

Urrando, estremece a terra,

bramir de rinoceronte,

enfia pelo horizonte

como um punhal que se enterra.

Tudo foge à sua volta,

o céu, as nuvens, as casas,

e com os bramidos que solta

lembra um demónio com asas.


Na confusão dos sentidos

já nem percebe, Leonor,

se o que lhe chega aos ouvidos

são ecos de amor perdidos

se os rugidos do motor.


Fuge, fuge, Leonoreta.

Vai na brasa, de lambreta.


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