segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Poemas

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

(Manuel Bandeira)


60 Anos

Antes o dia continha seu próprio significado
Hoje
Miro coisas que não entendo - leis turvas
E rostos ilegíveis -
A vida
Varre os domingos
Para os jardins pretéritos

O rumo se perdeu
Na desordem das águas
Por isto
Meus ossos rangem
À mutação das coisas e seu desígnio

(Cláudio Feldman)

Poema do jornal

O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.

Vem da sala de linótipos a doce música mecânica.

(Carlos Drummond de Andrade)

Quero escrever o borrão vermelho de sangue

Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.

Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.

Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

(Clarice Lispector)

4 comentários:

Al Cardoso disse...

De facto e triste e verdadeiro, muitos homens actuarem como bichos!!!

Adorei os poemas todos.

Um abraco d'algodrense.

Isabel Filipe disse...

uma bela escolha...


gostei essencialmente do 1º, que não conhecia ...


bjs

Amaral disse...

Al Cardoso
A poesia é uma arte belíssima é pena que os nossos políticos não leiam poesia.
O mundo seria melhor.
Abraço

Amaral disse...

Isabel
Obrigado. Pelo menos assim vamos lendo alguma poesia.
Bjinho