terça-feira, 13 de junho de 2006

Há um ano adeus a José Fontinha

A Poesia de Eugénio de Andrade*

_____________

Por José Amaral

Um fundanense no Porto...

A 19 de Janeiro de 1923 nasce na Póvoa da Atalaia, concelho do Fundão, José Fontinha. Quem? José Fontinha! É verdade, escrito desta maneira pouco diz e, aos mais desatentos, passa totalmente despercebida a data e o nome de um dos mais lidos e traduzidos, e um dos mais importantes, poetas contemporâneos portugueses: Eugénio de Andrade (EA).

José Rodrigues Miguéis diria que, “a melhor maneira de ser igual aos outros não é ser como eles, mas ser diferente: é sermos nós-mesmos até ao limite. O que torna os homens iguais é o direito a serem diversos”. É assim EA! Prova cabal disso é que o próprio prescinde do seu nome – que consta no registo civil – por volta dos 19 anos, aquando da publicação de “Adolescente” (1942), o seu primeiro livro de poesia, em função do pseudónimo que o tornaria conhecido em todo o mundo. Aliás, como reconhece EA, quem o chamar por José Fontinha arrisca-se a não receber resposta, já que o seu nome civil lhe é perfeitamente estranho.

Filho de camponeses, a sua infância é passada com a mãe, tanto que o pai (casou mais tarde com a mãe) é uma figura totalmente ausente do universo do poeta; aos seis anos entra para a escola, onde inicia a instrução primária e mais tarde prossegue os estudos em Castelo Branco, concluindo-os em Lisboa, onde frequenta o Liceu Passos Manuel e a Escola Técnica Machado de Castro.

Adolescente ainda, começa a escrever poesia, inspirado pelo primeiro poeta que conhece: António Botto. Contudo, é a copiar textos de Fernando Pessoa e admirando a obra daquele que considera seu mestre – Camilo Pessanha – que a sua veia poética vai desabrochar para o estrelado.

Por volta de 1943 fixa-se em Coimbra onde conhece nova referência para a sua obra: Miguel Torga. Em 44 faz tropa em Tavira e em 46 (finais de...) regressa a Lisboa, onde saem as primeiras traduções suas de poemas de Garcia Lorca.

Ao longo destes anos mantém correspondência com outros grandes escritores, entre eles Marguerite Yourcenar, por quem era tido em muito apreço e estima. Ainda na década de 40, conhece outra grande figura da poesia lusa, Sophia de Mello Breyner Andresen, que na altura o achava inteligente e bonito, mas algo narcísico.

Em 47, entra para a Inspecção dos Serviços Médico-Sociais, transferindo-se, em 1950, para o Porto para chefiar os serviços nesta cidade, uma vez que era solteiro, como, aliás, sempre se manteria.

Em 1956 morre-lhe a mãe, a quem dedica “Coração do Dia” (1958). É um pequeno (notável) livro que o marca, e cujos poemas, vários anos após, lhe continuam a ser proibitivos aos ouvidos, pois talvez o cordão umbilical nunca tivesse sido cortado na totalidade. Eu próprio, tive o prazer de o escutar a declamar poemas seus, na Universidade Católica em Viseu, há seis ou sete anos atrás, e quando leu um poema dedicado à mãe a voz tornou-se mais pausada (e porque não pesada), sentida e tremida. Só assim, é possível entender as palavras que ele, em “Os Amantes sem Dinheiro” no poema à mãe, endereça à sua progenitora: «Não me esqueci de nada, mãe./ Guardo a tua voz dentro de mim./ E deixo-te as rosas.../ Boa noite. Eu vou com as aves!».

Actualmente reside no Porto, na sua casa do Passeio Alegre, na Foz. Esta residência surge como gratidão do Porto – ideia nascida numa roda de amigos com a ajuda da Câmara – já que ele tanto fizera pela cidade. Surge, então, a Fundação Eugénio de Andrade, que funciona num prédio contíguo à residência do poeta, presidida pelo médico Duarte Correia e que tem em Dario Gonçalves (grande amigo de Eugénio) um dos fundadores que, actualmente, pertence à direcção da Fundação.

EA vive só, na companhia da sua gata Nickie (oferta do seu amigo Dario); levanta-se às oito e trata da sua constante companhia e preocupação. Andrade procura refugiar-se um pouco no seu mundo – a poesia – daí que seja um pouco alheio ao contacto com as coisas públicas e com entrevistas. Até mesmo as viagens que lhe davam imenso prazer, se tornaram menos intensas. Passa os dias a ler o último dos grandes poetas, Paul Celan, como afirma, a ouvir música (toda em geral, mas música de câmara, em particular) e às vezes a escrever. Além destas artes mostra-se confesso admirador de uma outra grande arte: a pintura.

Eugénio de Andrade gosta de viver no seu próprio mundo, o mundo da sua poesia, como opção absoluta.

É desta forma que EA, isolado no seu mundo, pode considerar viver com um gato, ter uma criança – o seu afilhado Miguel – e partilhar da amizade de três ou quatro amigos.

Actualmente, após aposentação em 1983, tem mais disponibilidade; quem ganha com isso é a sua região, a qual mereceu a sua visita, nos últimos anos, por três ou quatro vezes, retomando o gosto pelas viagens.

“Aquela Nuvem e Outras”

Eugénio de Andrade (EA) é, hoje, considerado um dos mais importantes poetas do séc. XX. Depois de Fernando Pessoa, ele é decerto, o poeta português mais lido e conhecido, mesmo no estrangeiro onde são traduzidas em maior número – de ano para ano – as suas obras; exemplo disso são os casos de Espanha, França, Itália, Rússia, Venezuela...

A sua vastíssima obra foi iniciada na adolescência com algumas tentativas (“Adolescente” e “Pureza”) que abjuraria, aproveitando tão só alguns poemas. Nota-se que EA, embora tendo “renegado” a sua terra-natal preferindo a grande metrópole, não se desliga totalmente do mundo que o viu nascer: o campo. A sua vivência na aldeia da Póvoa da Atalaia, nas cercanias da Serra da Gardunha, até aos oito anos, marca-o para sempre como ressalta da sua obra poética. É pois assim, que EA em entrevista a José Carlos Vasconcelos (in Visão, de 26/11/98) afirma: «a minha poesia sempre esteve mais perto da terra do que do mundo. Uso estas palavras no sentido que lhes dá Heidegger. Ou se prefere: a poesia que escrevo é, no nosso tempo, das raras em que a natureza é central. Sempre me senti mais próximo de um camponês do que de um tecnocrata, de Van Gogh do que de Kandinsky, de Rimbaud do que de Mallarmé, de Messiaen do que de Boulez, gente cujo espírito não tenha abolido o instinto».

Na obra eugeniana – aclamada através dos muitíssimos prémios que já recebeu, dos quais sobressai o Prémio Camões – podem encontrar-se (?) tendências contemporâneas tais como o Neo-Realismo, o Surrealismo, o Neobarroquismo Hispânico; todas afloram na sua obra como esteticismo modernista que o inspirou. Marginal a grupos e a movimentos, este tradutor de Garcia Lorca e das Lettres Portugaises atribuídas a Mariana Alcoforado, quase não acusa influência de quaisquer escolas literárias, propondo uma poesia elementar. Textos de notável coerência interior, onde uma simples metáfora – a sua poesia é carregada delas – chega para que os sentidos do poema se organizem em seu redor.

EA apenas transforma tudo numa pessoal fusão de sensibilidade e de segura consciência da sua peculiar originalidade. Não é, por isso, de estranhar que muitos considerem que na obra de EA mais do que do nosso modernismo, se reconheça a continuidade da geração espanhola de 1927. Sendo assim, ousa-se afirmar que EA é, a par de Camilo Pessanha, o poeta português mais próximo de uma poesia-música.

Fernando Pinto do Amaral reconhece que «os versos de Eugénio de Andrade, participam de uma carga afectiva, fruto de uma voz singular, acabam por manifestar um ardor pessoal, a certeza de uma fala e de um pathos que faz da poesia, além de um instrumento para conhecer o mundo, um meio privilegiado para “amar” o mundo».

Muitos são os temas a que EA dá vida na sua poesia: o vento e o fogo, a infância, o corpo, o desejo, o mar... entre outros. Senão reparemos: a água: “... olhar a água onde passam barcos,/ escura, densa, rumorosa/ de lírios ou pássaros nocturnos” (“Um rio te Espera”); os pássaros, em “Despertar”: “É um pássaro, é uma rosa,/ é o mar que me acorda?/ Pássaro ou rosa ou mar,/ tudo é ardor, tudo é amor”, ou então em “Aquela Nuvem e Outras”: “Eu serei um pássaro louco/ pássaro voando e voando/ sobre ti vezes sem conta”; a luz: “Que ronda matinal,/ que luz tão jovem...” (“Matinalmente”); vejamos, ainda, o tema do amor limpo das coisas no poema “Urgentemente”: “É urgente o amor/ (...)/ É urgente destruir certas palavras,/ ódio, solidão e crueldade”; ou, para terminar, um tema tão do seu agrado: a mãe, a quem EA no poema “Coração do Dia” escreve: “Mãe, já nada nos separa/ Na tua mão me levas/ Uma vez mais,/ ao bosque onde me sento/ à tua sombra”.

Estes são os temas que, subtilmente fundidos pela pena de EA, transformam a sua poesia em tão aclamada obra e que fazem esquecer não só o anónimo José Fontinha – mesmo renegando os seus primeiros rebentos poéticos – como engrandecer EA.

Só assim, perante um manancial tão rico pode, Jorge de Sena, pleno de razão, afirmar que a obra de EA “é das raras, na literatura portuguesa, a transcender um sentimento de frustração ou carência, em favor da celebração dos momentos de plenitude, em que as coisas, as sensações, o prazer e a dor se transfiguram”.

* Texto escrito em 2001.

Sem comentários: