
«Poucos terão sido aqueles que, em idade da razão, não tivessem vivido intensamente o período conturbado do PREC, cheio de contradições e acontecimentos marcantes. Nesse tempo, agora só de memórias, as palavras cortavam como facas e a canção era uma inquietante e irónica arma de revolta. Nessa época de liberdade e libertinagem, alegrias e tristezas, de excessos provavelmente frutos da longa noite de escuridão, concatenaram-se numa longa trama de avanços e recuos políticos, podendo muito bem ter culminado na instalação de uma ditadura do proletariado. Ninguém assistiu a tal realidade, ou melhor, só o personagem central do romance a vive. O Alberto Magro e a família, homem a entrar na casa dos “entas”, temente a Deus, ao Marcelo Caetano e aos valores que ele representa, e sem nunca perceber como, se vê injustamente envolvido em prováveis acontecimentos políticos desse tempo ficcionados ao longo de toda a trama. Nessa hipótese aqui aventada, o país muda tanto quanto a personagem central. O Alberto operário têxtil, pressente a mudança. Vai abrir a porta de casa ao seu irmão que regressa das ex-colónias, conotado com o anterior regime, e vai ver-se injustamente enclausurado em Custóias. Após a sua libertação, ao querer salvar o seu próprio irmão, também ele preso num distópico campo de aprendizagem, vai escavando um profundo “buraco” na terra e nele próprio. Forças que não dominam apoderam-se dele e consomem-no à medida que a revolução avança. Nessa lenta metamorfose mirrante, resultante das injustiças em que se vê envolvido e da descrença nos valores em que sempre acreditou, culminará num paradoxal e trágico acontecimento: o enterro no seu próprio buraco.
O país em paralelo, vai-se igualmente transformando, avermelhando, trancando-se sobre si próprio. A litoralização do país a que hoje se assiste não existe, o interior continua como sempre pobre mas povoado».
Este livro merece uma leitura cuidada. Estás de parabéns Sá Gué.
(José Amaral)
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