 Alexandre O’Neill
Alexandre O’Neill, poeta português, nasceu em Lisboa, mas é descendente de irlandeses
.  Autodidacta, fez os estudos liceais, frequentou a Escola Náutica, trabalhou na Previdência, no ramo dos seguros, nas bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian, e foi técnico de publicidade. Esta é uma das suas áreas mais reconhecidas. Durante algum tempo, publicou uma crónica semanal no "Diário de Lisboa". Em 1947, Alexandre O'Neill, Mário Cesariny e Mário Domingues começam a fazer experiências a nível da linguagem, na linha do surrealismo, sobretudo com os seus “Cadáveres Esquisitos” e “Diálogos Automáticos”, que conduziam ao desmembramento do sentido lógico dos textos e à pluralidade de sentidos.A poesia de Alexandre O'Neill concilia uma atitude de vanguarda,  manifestada no carácter lúdico do seu jogo com as palavras, no seu bestiário, que evidencia o lado surreal do real, ou nos típicos «inventários» surrealistas — com a influência da tradição literária (de autores como Nicolau Tolentino e o abade de Jazente, entre outros). Os seus textos caracterizam-se por uma intensa sátira a Portugal e aos portugueses, destruindo a imagem de um proletariado heróico criada pelo neo-realismo, a que contrapõe a vida mesquinha, a dor do quotidiano, vista no entanto sem dramatismos, ironicamente, numa alternância entre a constatação do absurdo da vida e o humor como única forma de se lhe opor. A solidão, o amor, o sonho, a passagem do tempo ou a morte são temas que conduzem ao medo e/ou à revolta, de que o homem só poderá libertar-se através do humor, contrabalançado por vezes por um tom discretamente sentimental, revelador de um certo desespero perante o marasmo do país. Este humor é, muitas vezes, manifestado numa linguagem que parodia discursos estereotipados, como os discursos oficiais ou publicitários, ou que reflecte a própria organização social, pela integração nela operada do calão, da gíria, de lugares-comuns pequeno-burgueses, de onomatopeias ou de neologismos inventados pelo autor.
Acabei de (re)ler “Poesias Completas”, numa edição da Assírio & Alvim e que recomendo vivamente.
 
  Portugal
 
    
     
  Ó Portugal, se fosses só três sílabas, 
    linda vista para o mar, 
    Minho verde, Algarve de cal, 
    jerico rapando o espinhaço da terra, 
    surdo e miudinho, 
    moinho a braços com um vento 
    testarudo, mas embolado e, afinal, amigo, 
    se fosses só o sal, o sol, o sul, 
    o ladino pardal, 
    o manso boi coloquial, 
    a rechinante sardinha, 
    a desancada varina, 
    o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos, 
    a muda queixa amendoada 
    duns olhos pestanítidos, 
    se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos, 
    o ferrugento cão asmático das praias, 
    o grilo engaiolado, a grila no lábio, 
    o calendário na parede, o emblema na lapela, 
    ó Portugal, se fosses só três sílabas 
    de plástico, que era mais barato! 
      
    * 
      
    Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos, 
 
    rendeiras de Viana, toureiros da Golegã, 
    não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço, 
    galo que cante a cores na minha prateleira, 
    alvura arrendada para ó meu devaneio, 
    bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço. 
      
    Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, 
    golpe até ao osso, fome sem entretém, 
    perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, 
    rocim engraxado, 
    feira cabisbaixa, 
    meu remorso, 
    meu remorso de todos nós...
   
  (in Feira Cabisbaixa, 1965)
   
   
  (José Amaral)