terça-feira, 26 de maio de 2009

Divinal

Quando pensamos que já lemos tudo, e nada mais nos pode surpreender, surge-nos um livro maravilhoso. É como se tivéssemos levado um murro no estômago.
Li num comentário num blog: «Como ser atropelado por um livro em poucas linhas». Este título ilustra bem o que é esta obra-prima. Trata-se de um livro de Juan José Millás, O Mundo (Editora: Planeta, 174 páginas).
Esta obra ímpar, de um autor que desconhecia, foi galardoada com o “Prémio Planeta 2007” e o “Prémio Nacional da Narrativa 2008”. Mas mesmo que não tivesse ganho nenhum prémio, já seria uma vencedora.
Neste livro tudo nos surpeende, a começar pela epígrafe: «o mundo é a rua da tua infância», que aparece na capa.
Ou uma outra frase que aparece na badana: «Ao princípio era o frio. Quem teve frio em pequeno, terá frio o resto da vida, porque o frio da infância não desaparece nunca».
Poderíamos ficar por aqui, mas era uma injustiça tremenda. Lê-se na contracapa: «Há livros que fazem parte de um plano e livros que, tal como um carro que passa um semáforo encarnado, se atravessam violentamente na nossa existência. Este é um dos que passam o semáforo. Encomendaram-me uma reportagem sobre mim próprio, e por isso comecei a seguir-me para estudar os meus hábitos.(...) Compreendi que a escrita, tal como o bisturi do meu pai, cicatrizava as feridas no mesmo momento em que as abria e descobri por que motivo eu era escritor. Não fui capaz de fazer a reportagem: acabava de ser atropelada por um romance.»
Estamos na presença de um romance autobiográfico de Juan José Millás. Na oficina das traseiras, onde o pai reparava aparelhos de medicina, o pequeno Juanjo assiste aos testes, em bifes de vaca, do bisturi eléctrico inventado pelo progenitor: um instrumento que garantia ao mesmo tempo o golpe preciso e a sua cicatrização imediata.
As cicatrizes dos primeiros anos – da problemática mudança de Valência para Madrid (onde o esperava a pobreza e o frio) ao desatino adolescente que o levou ao seminário – são justamente a matéria-prima deste livro em que Millás se entrega à reinvenção literária da sua vida.
Mais do que um romance, este livro é «um processo metabólico», uma coisa arrancada a ferros lá onde mais dói, um testemunho de quem atravessa o espelho sabendo que está a atravessar o espelho. Millás circula pelos espaços míticos da infância (a rua de Canillas, «espécie de maqueta do mundo» que reencontrará noutros lugares; a casa familiar; o imaginado Bairro dos Mortos) e reelabora vários momentos traumáticos (a relação difícil com a mãe; a perda do amigo Vitaminas; os descalabros amorosos; a dificuldade de deitar as cinzas dos pais ao mar). O Mundo alterna estados delirantes, «frágeis como bolas de sabão», e momentos de uma lucidez implacável.
Se tivesse que rever o meu Top5 dos livros favoritos este entraria directamente. Vale a pena ler! É um crime não ler!


(José Amaral)

8 comentários:

Delfim Peixoto disse...

OOps ... não quero ser preso (rsrsr)... vou tentar ler, devagarinho... se conseguir encontrar na Livraria!
Abraço

Amaral disse...

Delfim
Vais encontrar de certeza. Vais ler e vais dizer-me o quanto gostaste.
Não percas.
Abraço

Meg disse...

Amaral,

Este vou comprar... já!
Ou antes, vou encomendá-lo.
A apresentação que fazes deste livro, deixou-me interessadíssima.
Obrigada por mais esta bela sugestão de leitura.

Um abraço

Amaral disse...

Meg

Também espero que, depois de o leres, me digas se é ou não um livro fabuloso, uma obra-prima.
Abraço

Carla disse...

saí motivada...vou ler de certeza e rapidamente face ao que disseste
beijos

Carla Pimentel disse...

As tuas sugestões de leitura parecem-me muito interessantes e são, sempre, muito bem relatadas... Ad Litteram passará a ser a minha biblioteca de referência.

Amaral disse...

Carla
Se me permites, faz-me esse favor. Vais adorar.
Boa leitura.
Bjo

Amaral disse...

Carla Pimentel
Procuro fazer o melhor. Quanto ao facto de o AdLitteram ser a tua biblioteca de referência fico muito orgulhoso. Obrigado.
Bjo